Vamos começar a não deixar ninguém para trás?
As chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024 trouxeram impactos que chocaram a população brasileira. Essa situação levou a uma intensa mobilização da sociedade para ajudar os gaúchos. Foram doações de todas as formas: dinheiro, roupas, alimentos. Os estragos, sem dúvida, foram enormes. Para se ter uma ideia do que ocorreu praticamente todos os municípios foram atingidos e alguns simplesmente deixaram de existir[1]. Além das consequências negativas mais evidentes como o deslocamento das famílias de suas casas, a falta de água potável, a impossibilidade de recorrer a hospitais, corte no fornecimento de energia elétrica; outras, de longo prazo, são menos perceptíveis. A saúde mental de milhares de pessoas ficou profundamente impactada. Imaginem que muitas pessoas precisaram deixar às pressas suas residências para morar em abrigos o que levou a uma mudança imediata e radical do seu modo de vida. Ou ainda a violência sexual que meninas e mulheres sofreram nos abrigos e em outras situações. Esses e outros impactos vão se prolongar no tempo. Não podemos nos esquecer que eventos climáticos extremos (como fortes chuvas) já se tornaram frequentes e, portanto, um lugar comum.
Diante desse cenário uma realidade se esconde: as consequências do desastre não são sentidas da mesma forma por todos os grupos sociais. É sabido, como dito acima, que mulheres estão mais expostas a riscos de violência sexual. E seria possível, ao já se ter conhecimento desse risco, traçar antecipadamente uma política de proteção a mulheres nesse contexto de desastre. Os mais pobres, por sua vez, encontram-se com uma dificuldade muito maior tanto de imediatamente responder às necessidades advindas do desastre (preços de produtos básicos podem subir demais, por exemplo) ou ainda de reconstrução de suas vidas.
“Não deixar ninguém para trás” (leave no one behind) é uma das principais abordagens atualmente desenvolvidas pela ONU para encaminhar vulnerabilidades não só, mas também em um contexto de desastre. Essa abordagem agrega elementos contextuais para definir quem deve ser considerado vulnerável e, portanto, precisa de medidas específicas e prioritárias. Assim, a identificação dos grupos vulneráveis depende de cinco fatores: (i) discriminação (raça, gênero, idade, classe social, orientação sexual, religião, nacionalidade, etc); (ii) geografia (as relações do local de moradia com ausência de serviços públicos e privados, maior exposição a riscos etc); (iii) governança (capacidade de influência sobre as decisões, nível de ingerência sobre aplicação de recursos, maior ou menor grau de controle social sobre as políticas públicas etc) ; (iv) status socioeconômico (oportunidade dos grupos manterem níveis adequados de bens essenciais como renda, saúde, educação, moradia, transporte, alimentação, água); e (v) exposição a choques (capacidade de lidar com diversos impactos como desastres, riscos naturais, violência).
As medidas para reconstrução do território e das comunidades no Rio Grande do Sul precisam levar em consideração as particularidades sociais, econômicas, culturais e institucionais de toda a população. Portanto, não deixar ninguém para trás significa estruturar políticas públicas que consigam recompor diferentes modos de vida e não apenas de alguns grupos socialmente menos vulneráveis e isso pode requerer um olhar atento às diferentes situações.
[1] Fonte: Editorial, Crise climática e os novos desafios para os sistemas de saúde: o caso das enchentes no Rio Grande do Sul/Brasil, Saúde debate, v. 48, n. 141, abril/maio, 2024, disponível em:
https://www.scielo.br/j/sdeb/a/WdTp7y6f9L6kgnCxDsrw8yr/?lang=p
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